2 de setembro de 2010

Comendo gente

Você deve ter acompanhado a polêmica da última semana sobre o Restaurante Flimé, que fez ampla campanha na mídia alemã anunciando que serviria pratos baseados na cozinha da tribo amazônica wari, conhecida por seus hábitos canibais. Se não acompanhou, leia aqui. No site deles, em que diziam ser filial de um restaurante brasileiro, havia um formulário que os interessados podiam preencher concordando em doar uma parte do seu corpo para o restaurante.

Amigos meus, onívoros, vieram me perguntar o que eu achava disso. É repugnante mas, sinceramente, pelo menos as pessoas cujos membros serão degustados terão concordado com isso e cedido partes de si por livre e espontânea vontade.

Isto é, se esse restaurante fosse mesmo existir. Pois, como já se suspeitava, era um golpe publicitário para chamar a atenção para a organização pró-vegetarianismo alemã Vebu. O argumento deles é de que em todo pedaço de carne existe um pouco da espécie humana. Isto porque, enquanto no mundo 1 bilhão de pessoas passam fome e 1 morre a cada 3 segundos de desnutrição, a maior parte da produção mundial de grãos é destinada à alimentação animal para a indústria de carne. Para produzir 1kg de carne, é preciso dar 16kg de comida. E antes que digam "é capim, nós não queremos capim!", estou falando de ração feita a partir de grãos e de soja. No mínimo, isso é um uso ineficiente de recursos. Eles falam também dos danos ambientais causados por essa indústria, algo que já abordei em outro post.

Outro pedaço da humanidade presente na carne que não foi abordado no posicionamento do Vebu é o impacto psicológico que esta indústria tem sobre as pessoas que trabalham em matadouros. Se você entende bem inglês, recomendo que ouça este podcast da Colleen Patrick-Goudreau sobre a criação de porcos, em que ela fala de uma reportagem investigativa (que virou livro) feita pela jornalista Gail Eisnitz, do Washington Post, em todos os matadouros dos Estados Unidos (em todos, para não dizerem que o que ela viu foram fatos isolados). Esta jornalista registrou entrevistas com os trabalhadores, em que eles próprios falam sobre como ficam dessensibilizados à violência, como esse ciclo de violência faz com que eles tenham comportamentos que eles mesmos reconhecem como abusivos e como essa violência é motivada pelo estresse ao qual eles são submetidos diariamente. E, finalmente, como é comum que este comportamento se reflita nas relações familiares, culminando em casos de alcoolismo e violência doméstica.

(Aliás, se interessar ouça todos os podcasts dela, que são realmente excelentes. Tem um box com o link na barra lateral do blog.)

8 comentários:

  1. Olha, eu fui vegetariana por um ano. Acompanhei o caso desse suposto restaurante e achei de um mal gosto tremendo a ação dessa galera. Por que há pouco teve aquele canibal que foi preso e talz. Acho que existem outras formas de chamar a atenção para a causa veg e não assim, espalhando um absurdo desses e atraindo um bando de louco (e não estou falando dos corintianos). Péssimo.

    ResponderExcluir
  2. É o onivorismo tem seu lado animal, porque é isso que somos bem no fundo, tá nem tão no fundo.

    Agora quando as pessoas que morrem de fome, a distribuição de renda porca que causa isso acho meio forçar a barra empurrar a culpa com a barriga para os criadores e pessoas que comem carne, chega a ser feio.

    E outra esse negocio de humanizar animais sou contra, animais são animai.

    Enfim, não sei, é uma coisa a se pensar

    ResponderExcluir
  3. Complicados, todos os pontos de vista aqui nos comentários.

    Mas como estou numa manhã bem inspirada, vai um monte de perguntas.

    Antes que joguem pedras, aviso que eu não como ninguém.

    Há problemas em comer gente? Se realmente existisse um restaurante feito com carne de gente voluntária? Por quê? Discorra... :P

    Pontos a abordar:
    - eu tenho o direito de me sacrificar em nome do meu país, lutando pra defender um conceito abstrato. Isso é até bonito em algumas culturas.
    - golfinhos são inteligentes.
    - porcos têm o DNA quase igual ao dos humanos, e bacon é legal.
    - as pessoas morrem de fome por mil fatores, inclusive porque se gasta dinheiro com bancos, videogame ou a busca da cura da AIDS.
    - e se usássemos a carne de condenados à pena de morte?
    - se a punição para tentativas mal-sucedidas de suicídio fosse virar churrasco?
    - comer alguém signfica absorver a sua alma?
    - eu tirei as amídalas. poderia ter vendido ao restaurante? continuo vivo (acho).
    - animais são animais (disse o Orelha). eu acho que a maioria das pessoas também é bicho. onde está a linha? No QI (conheço peixes de aquário mais inteligentes que muita gente, não tô de brinks)? Na espécie (DNA do porco ou do macaco)?
    - se a gente puder criar fígados ou corações in-vitro para transplantes, porque não pode fazer para um restaurante?
    - eu pago 20 dinheiros por um quilo de picanha e 1 dinheiro por um quilo de soja. NAONDE estou matando gente de fome? Na lógica produtiva, estou gastando mais dinheiro meu, e fazendo a economia circular. Eu não vou comer 20 quilos de soja, comeria somente um, então o argumento de que a soja é mais eficiente não é inteiramente verdadeiro.
    - é justo comprar o tempo das pessoas, mas não os corpos? qual é a diferença? aluguel pode, venda não?
    - se algum argumento pró-canibalismo fosse válido, a cremação poderia ser considerada desperdício?

    ResponderExcluir
  4. Obrigado pelos comentários, foi mais do que eu esperava! Aliás, obrigado Tarrask, acho que é a primeira vez que você comenta por aqui!

    Tadsh, concordo com você que foi uma campanha de mau gosto. A ideia é repugnante, canibalismo é tabu na maioria das culturas. Mas se parar pra pensar, as campanhas pró-carne são bem sádicas, ainda que não sejam percebidas assim, porque para a maioria das pessoas é normal comer carne. Pensa no mascote da Sadia, aquele franguinho de capacete. Todo feliz e saltitante, Lequetreque nem sabe o que o espera... hehehhe. E o McDonald's que uns anos atrás fez uma campanha para um novo McChicken com uma vaca segurando uma placa que dizia "coma frango"?
    O que te fez voltar a comer carne, Tadsh?

    Orelha, é verdade que a fome é um problema complexo com várias causas, como disse o Tarrask. Desigualdade social, má distribuição de renda, desertificação... Não dá pra isolar uma só. Mas acho que o argumento da Vebu e da maioria dos vegetarianos é válido se visto como uma solução possível, não como a única. Nós produzimos alimentos de origem vegetal em quantidade suficiente para alimentar o mundo todo. Só que para parte desse alimento ser destinado aos humanos que passam fome, eles precisam deixar de ser oferecidos para os animais (só nos Estados Unidos, 90% da produção de soja é para alimentação de gado). Isso implica em uma redução na produção de carne, mas a indústria não vai fazer isso por vontade própria, é óbvio. Por isso, uma das formas de destinar estes produtos para alimentar quem tem fome é reduzindo o consumo de produtos de origem animal, forçando a redução da produção.

    Quanto a humanizar animais, não sei exatamente onde fiz isso no post. Mas me chamou atenção você ter falado que no fundo - ou nem tão no fundo - nós somos animais. Já reparou como nós, enquanto espécie, tentamos sempre nos distanciar dos animais, e só admitimos que temos alguma semelhança com eles quando queremos justificar nosso hábito de comer outros animais?

    ResponderExcluir
  5. Tarrask, boas questões. Me fizeram pensar. Vou tentar abordar todas =)
    Como eu disse, canibalismo é tabu na maioria das culturas. Certamente é na minha, e eu acho repugnante. No entanto, também acredito que cada um é livre para fazer suas escolhas, desde que esteja preparado para lidar com as consequências delas. Se existisse um restaurante que servisse carne de gente voluntária, eu continuaria achando repugnante, ia torcer pra fechar porque só de pensar nisso fico com nojo, mas fazer o quê? Não estão fazendo mal pra ninguém a não ser a si mesmos. Se você quisesse doar as suas amígdalas, poderia. Só não sei se é um corte que agradaria o paladar refinado dos frequentadores do tal restaurante. ;) (Vender, por outro lado, acho complicado. Isso encorajaria as pessoas, e me preocupa o impacto que um monte de amputados voluntários teria sobre a saúde pública. Nós mal conseguimos atender a quem precisa de verdade.)
    Se um dia a ciência conseguir criar órgãos in vitro, temo que algum idiota vai dar um jeito de fazer isso em escala industrial pra vender até no Carrefour (True Blood mode:on).
    Já usar a carne de condenados à morte não seria ok, a não ser que eles tivessem concordado com isso.
    Sobre suicídio, acho que uma punição dessas para tentativas mal-sucedidas reduziria drasticamente as taxas de suicídio. Você já deve ter ouvido falar que isso aconteceu quando decidiram punir os suicidas fracassados com a morte, porque eles querem morrer pelas próprias mãos, não pelas dos outros. Além do mais, os suicidas normalmente pensam menos no que vai acontecer com seu corpo depois do ato do que na reação das pessoas à sua falta. Uma punição dessas faria os suicidas pensarem no destino da sua carne e dos seus ossos, e provavelmente desistiriam disso.
    Os Wari acreditam que comer os inimigos é uma forma de se fortalecerem, e comer os membros da tribo após a morte é uma demonstração de respeito e uma forma de superar a perda. Na cultura deles, onde o canibalismo é normal, talvez a cremação ou qualquer forma de sepultamento seja considerada desperdício ou desrespeito. Não sei se o conceito de alma faz parte do ritual deles. A minha criação cristã me faz pensar que, se é que há alma, ela vai pro céu e deixa o corpo aqui pra ser comido, seja por pessoas, seja por vermes.
    Sobre a sua picanha: comer produtos de origem vegetal é mais eficiente do que comer produtos de origem animal simplesmente porque eles são a fonte primária dos nutrientes que você precisa. Uma parte do que a vaca come é consumida no metabolismo dela, não chega até você. Obviamente não estou sugerindo que se coma só ração de vaca, ou só soja. Estou falando de uma dieta balanceada a base de produtos vegetais (as vacas recebem uma dieta balanceada de acordo com as necessidades delas).

    Animais são animais, disse o Orelha, e os humanos são animais também. A linha é o intelecto? Golfinhos se comunicam, conseguem resolver problemas. É a habilidade física? Nós temos polegar opositor mas não conseguimos correr como um leopardo, nadar como um tubarão, saltar de galho em galho como um sagui e muito menos voar. É a capacidade de ter sentimentos "complexos" como o amor? Pinguins, golfinhos e cavalos marinhos só têm uma parceira pela vida toda e chimpanzés são capazes de atos de compaixão.
    Não existe uma linha. Não existe UMA linha. Nós nos achamos superiores aos outros animais porque nós somos NÓS. Um leopardo pode olhar para um humano e considerá-lo de uma espécie inferior porque não consegue correr tão rápido quanto ele. Um tubarão vê um surfista e o considera jantar porque o surfista não nada tão rápido quanto ele. As baratas olham pra gente e riem pensando numa guerra nuclear. Não existe UMA linha. Olha como nós não somos tão superiores assim.

    ResponderExcluir
  6. Muito perfeito teu blog, adorei. vou visitar sempre. Ah, estou seguindo aqui. se puder segue o meu. www.iandeee.blogspot.com :D

    ResponderExcluir
  7. Toni,

    então não dá pra ter respostas definitivas?

    Se não dá pra ter, se não se pode criar uma linha que delimite o problema, então temos um problema maior ainda.

    De repente, alguém pode ver a campanha e sei lá, ficar interessado em comer gente.

    Há pessoas que comem Foie Gras, ou carne de golfinho conseguida através de tortura no Japão.

    E se as plantas tivessem sentimento, comeríamos pedra?

    Aliás, porque não proibimos os animais de comerem outros animais?

    ResponderExcluir
  8. Tarrask, em que área do conhecimento é possível ter respostas definitivas? Volta e meia aparece uma nova teoria desafiando noções estabelecidas.

    O que existe são fatos que nós devemos analisar para tomar decisões. Enquanto não se proíbem o Foie Gras (na Califórnia já é proibido produzir pelo procedimento tradicional) e a caça de golfinhos, o máximo que eu posso fazer é a minha própria escolha. No fundo, é uma questão pessoal mesmo. O governo, qualquer que seja, não vai proibir a produção e o consumo de carne. Há interesses demais por trás disso, e seria uma medida completamente impopular. Mas eu não preciso que o governo decida por mim.

    Eu sou vegetariano porque eu posso. O ser humano é onívoro, mas isso significa que ele é capaz de comer de tudo, não que ele precise comer de tudo. Não é errado um leão comer uma zebra; ele não consegue digerir alface, só carne. Além disso, tanto o leão quanto a zebra fazem parte de um equilíbrio. Acho que não dá pra chamar a nossa indústria de carne de "equilíbrio".

    ResponderExcluir